CRISÓSTOMO E CRIS

                                                CRISÓSTOMO E CRIS

   O professor de línguas neolatinas Crisóstomo era um purista do vernáculo, e tinha um ouvido ultra-sensível na captação dos erros e do mau uso da língua portuguesa. Rigoroso nas notas com que avaliava as provas dos seus alunos, obter dele uma nota cinco em dez era uma proeza além de Rui Barbosa, o incrível autor da Réplica.

   Mas quanto à moral, já o professor era flexível. Ia para as cidades vizinhas aos sábados e se punha à caça, nas boates. Transformava-se em Cris, bom de copo e de prosa, pé-de-valsa infatigável.

   O professor era uma criatura cheia de idiossincrasias, e uma delas era que para os ricos tinha uma sensibilidade exacerbada. Via os homens envolvidos numa aura magnética e as mulheres numa sensualidade diabólica.

   Chamava a riqueza de FAX - fator alucinógeno X.

  Uma noite viu num fundo de boate uma garota linda, que o atraíu não só pela beleza, mas também porque era filha de um fazendeiro e ex-deputado federal, conhecido como o megalionário do norte, latifundiário que tinha três Bélgicas nas extensões incomensuráveis da Amazônia, registradas em nome de seus filhos, netos e dezenas de testas-de-ferro, suas máscaras.

 Uma irresistível compulsão o levou a assediar a garota, pondo em exercício todos os seus recursos de sedução.

  A garota estava surpresa com aquele professor Crisóstomo transfigurado em Cris, como as garotas o chamavam, pois já tinha sido sua aluna, e o detestara não só pela sua crueldade nas notas, como pelo seu mau humor crônico, na condução das aulas.

   Aquele Cris seria mesmo o taciturno professor Crisóstomo? Dansante, falante e extrovertido daquele jeito? Incrível. Ficou fascinada, e abriu o seu sorriso aos olhares obstinados daquele ser camaleônico. Quem se manifestaria com ela, Cris ou Crisóstomo? Quando lhe dissesse que tinha sido sua aluna há sete anos, o professor Crisóstomo trancaria Cris em si, inibido?

   Ela sorria à vontade e ele, que deveria ser a serpente hipnótica, viu-se reduzido a rã hipnotizada. Quando chegou à sua mesa, foi ela que tomou a iniciativa.

   - Já fui sua aluna, sabia?

   - Não, não me lembro.

   - Fui sim, há sete anos. Sou a Estelinha, magrela, sardenta.

   - Puxa, que transformação!...

   O olhar de cima abaixo evidenciou que Cris ainda estava ali.

   Saíram da boate, ela com cinco uísques na cabeça, ele com nove e um pensamento: o motel estava a dez quilômetros dali. Mais longe que o planeta Saturno.

   Fez o percurso com a velocidade da luz.

   - Que motorista! - admirou-se a garota.

   Estavam já no motel e na cama quando ela, demorando os olhos-nos-olhos, naquela atmosfera de sonho, lhe murmurou:

   - Porra! Estou com um tesão do caralho!

   O rosto do professor Crisóstomo substituíu instantaneamente o de Cris. E empalideceu, de    horror.

   Depois inchou, de indignação.

   E finalmente avermelhou-se, de ódio.

   - Sua vaca! - vociferou.

   - O quê? - exclamou a garota, perplexa.

   - Então a gente está aqui, subindo pras galáxias, e você me acerta essa cacetada no ouvido?

   - Mas o que é que eu disse?

   - Disse porra, essa palavra que é um nojo. Disse tesão, essa agressão ao ouvido! Disse caralho, essa aberração do mau gosto. E todos esse sons grotescos numa só frase, emporcalhando a sua boca. As mais graves agressões concebidas pelo vulgo contra a estética da língua portuguesa!

   Foi um escândalo.

   - Que tal o som de " vai pra puta que o pariu?" - gritou a mocinha.

   A discussão paralisou os casais de dezenove suítes ocupadas. Aqueles gritos ultrapassavam os decibéis admissíveis, compreensíveis e sabiamente tolerados, num motel. Não eram gritinhos e gemidinhos. Eram berros de briga, uma imoralidade naquela colméia da paz e do amor.

  A gerência lhes pregou uma descompostura, pelo telefone, e se fez o silêncio. Com o restabelecimento da paz, reiniciaram-se as atividades de rotina nos dezenove ninhos.

   A garota, por fim, desculpou-se.:

   - Tá certo, perdão. Eu não sabia dessa sua fobia.

   - Fobia o cacete!

   - Olha aí, olha aí o que você disse, seu gaiato! Tá de gozação comigo?

   - A gente até perde o controle. Mas veja você: a palavra orgasmo, por exemplo, cairia bem como nome de doença pulmonar: "- Ai, cuspi sangue. É o orgasmo, meu Deus!" Fuder é um verbo que só poderia, mesmo, servir para desejar a desgraça alheia: " - Foda-se!"

   - E como é que se diz, então? Fazer nenê?

   - Não. "Fazer nenê" assusta, é altamente brochante. Imagine o nenê já crescido, um belo rapaz, um gato. E me diga: não é melhor "vamos fazer um gato" do que " vamos fazer um nenê? "Fazer um gato" é melhor. Mais gaiato e sensual, como convém à festa lúdico-libidinosa do amor.

   - Mas o que é, então, que a gente deve dizer no lugar de... sabe que você tem razão? No lugar de porra. Mas eu disse porra interjeição, não porra substantivo.

   - Não diga nada. Interjeição não tem sinônimo. Por ser substantivo travestido de interjeição não fica menos feio, assim como um travesti fantasiado de odalisca não fica menos estapafúrdio.

   - Tesão, tesão, tesão... cruz-credo. E no lugar de tesão?

   - A língua portuguesa é riquíssima. Procure no dicionário os sinônimos. Se não achar, faça um exercício. Crie neologismos, como, por exemplo... sindromal.

   - Sindromal?

   - Aglutinação de "síndrome do mal". Todas as desgraças vêm do tesão. Sobretudo as ânsias de poder e dinheiro.

   - É, estou vendo que errei. Perdoe-me, professor.

   - Você não tem perdão. Você usou esses palavrões nas escadarias do céu. Ali, nos portões do paraíso, a gente em estado de graça, e você disse esse trio infernal. Foi uma monstruosidade.

   - E pra acabar com o... Santa Maria! E pra acabar com o caralho?

   - Aí é pródigo o espectro vocabular que nos propicia a última flor do Lácio, a língua portuguesa.    Há centenas de sinônimos na língua praticada pelos brasileiros nas cinco regiões do Brasil.

   O professor declinou uns trinta, quando a garota o interrompeu.

    - Chega! Isso agride os ouvidos. São grosseiros demais.

   - Viu? Viu como as palavras podem ser punhais? Mas se você quiser mais classe, mais sofisticação no uso da língua, poderá socorrer-se de uma conotação histórico-paradigmática. Poderá chamar o bilau de Ivan, o Terrível; Átila, o Flagelo; Alexandre, o Grande: Calígula, o Cruel; Salomão, o Rei; Nero, o incendiário; Spartacus, o escravo; Leônidas, o herói; Felizberto, o caçador; Feliciano, o Mártir; Dom Sebastião, o Desejado; Carlos, o Calvo; Pepino, o Breve...

   - Epa! Tem que ser Pepino, o Fleugmático.

    .... Filipe, o Belo; Caramuru, o Pau de Fogo...

    - Não é Filipe com "i", cara. É Felipe com "e".

   - Quer me ensinar, é? É Filipe, com "i". Assim como é com "i" Filipe, o Intrépido; Filipe, o Formoso; Filipe III, o Ousado; e Filipe V, o Comprido.

    - Santo Deus, você estudou a matéria?

    - Profundamente. E Filipe, o Intrépido, foi o fundador da Ordem do Tosão de Ouro.

    - Tosão?

    - Não é isso que você está pensando não, ô imoral. Tosão é lã de carneiro.

   - Gostei também de Caramuru, o Pau de Fogo. Foi a única homenagem à história do Brasil. Continue.

   - Mas da história do Brasil ainda podemos extrair Conde D´Eu, Marquês de Pombal e Borbagato, assim como da história universal podemos sacar Apolonius, Petrônius Andrômacus...

   - Nossa! - Admirou-se a menina - Dá impressão de ser enorme! Petrônius Andrômacus...Esse eu não encarava. É nome de gladiador. Prefiro Lulu. Bonitinho, de por no sofá e trazer na coleira.

   - É válido, do seu ponto de vista.

   - E... ai, que tristeza! Nossa Senhora de Guadalupe...

   - Isso é uma aula de filologia, ô boba. Tá com vergonha de quê?

   - Bo-ce-ta. Santa Bárbara! E boceta?

   - Diga alteza, preá, guaiaca, rabeca, Condessa D´Eu, Doroti, arapuaca, cuiambuca, bruxoca etc. Invente, componha neologismos, a língua portuguesa é pródiga, meu bem.

   - Mas arapuaca?

   - O mesmo que arapuca, menina.

   - Cuiambuca?

   - O mesmo que cumbuca, vaso para líquidos, lugar onde o homem, segundo o dito popular, não põe a mão. Na verdade, quer meter a mão, braço e cabeça.

   - Bruxoca?

   - De bruxa mais oca, cabana. Cabana da Bruxa.

   - Genial. Mas quem é que vai chamar a coisa de rabeca?

   - Não chamam de perereca? Mas amada discípula, tudo é relativo. O nome varia de acordo com as circunstâncias. Se no amor ela pode ser chamada de preá, na briga vira precheca, Catarina, a Grande, Triângulo das Bermudas, o diabo! No auge do ódio pode virar até vagina. Já o Marques de Pombal ganha milhões de alcunhas, ao gosto da mulher e na razão da sua fúria, quando não ganha um ponta-pé nos dois barões, seus fiéis vassalos.

   - Cris, você é um gênio! - sucumbiu a garota.

  Aquelas almas gêmeas acabariam por harmonizar-se, não fosse ela uma ricaça caprichosa, temperamental e indomável. O namoro foi uma hecatombe. O professor se viu tonto e perdido nas volutas dum furacão.

   Explodiram nas ruas, estradas e motéis os mais estrambóticos e mirabolantes escândalos de que se teve notícia na região.

   - Eu tenho dinheiro pra contratar um pistoleiro do Rio e te mandar pro inferno, maldito! E arapuaca pode ser a guaiaca da sua mãe, a da minha, não!

    - Hein? O quê? - indagavam os circunstantes. - Arapuaca? Guaiaca?

   - Me mandar pro inferno, a mim? Não é preciso, boneca. É só continuar nos doze gatos por noite, que esse é o meu inferno.

   - Doze o quê? Gatos? - interrogavam-se as testemunhas do enigmático duelo verbal.

   E os transeuntes se aglomeravam.

   - Demônio, quem pensa que você é, com esse borbagato de merda?

   - Um mero tocador de rabeca, um servo de sua majestade, Catarina, a Grande.

   Foi um choque, na menina. O seu rosto entumesceu, de ódio.

   - Monstro! desapareça da minha vida!

   O professor de línguas neolatinas recuou, como que diante de algo inacreditável, e depois se ajoelhou no chão, com os olhos voltados para o céu.

   - Ó Deus, aleluia! Estou salvo! Salvo!

   A garota já não tinha o que xingar, diante da ironia do professor, e implodiu num urro feroz e exasperado, ao que, assustada com o crescendo da multidão, se retirou correndo, o que fez como praticante de balê, lépida, com a graça de uma bailarina.

   A pequena multidão que se reunira no portal do motel não compreendeu o debate, mas ficou toda arrepiada. Aquilo era uma peça teatral representada num dialeto desconhecido, mas sem dúvida estavam próximos do "grand finale" de uma tragédia clássica.

   Fez-se o silêncio e a multidão, expectante, se concentrou no ator, de joelhos, no chão. O professor se deu conta de que não representara a ironia só para a garota, mas para toda aquela platéia. A sua cabeça caiu, de vergonha.

   Era o "grand finale". O efeito cênico foi tremendo: a multidão ficou congelada, de emoção.

   Alguém timidamente bateu palmas, um velho gritou " bravo! bravo!", e a multidão, como que acordada do transe emocional, prorrompeu em aplausos.

   O professor se levantou e agradeceu, impressionado.

   Adorou os aplausos.

   Passou dias e noite introvertido, imerso em pensamentos e emoções surpreendentes, até que tomou uma decisão.

   Tornou-se um ator de teatro, em São Paulo, tão convincente nos seus papéis, tão carismático no palco que o governador, depois de assistir-lhe uma peça, foi ao seu camarim e lhe sugeriu candidatar-se a deputado.

   - Estadual? - indagou-lhe Crisóstomo, levando a sugestão em brincadeira.

   - Federal, meu caro. E falo sério. Você já é conhecido e admirado na cidade.Tem uma imagem sedutora. Afinal, o que é o político? Um ator.

   Há algum tempo Crisóstomo já sentia que ser ator era algo medíocre para a sua genialidade na arte de simular e dissimular.

  Representara com absoluto êxito o professor macambúzio, fechadão e inacessível nas faculdades, depois que foi processado pelo crime de sedução de uma aluna, bela garota de dezessete anos.

   Sua genialidade exigia um palco maior: o Congresso Nacional. Aceitou o convite do governador.

    Foi eleito e reeleito deputado federal - com o apoio do partido do governador.

   Agora poderá candidatar-se ao senado, disse-lhe uma deputada, no plenário da câmara.

   Quando um dos seus assessores lhe comunicou que fora reeleito com mais de duzentos mil votos, ficou olhando para ele, introvertido.

   - Que foi? - indagou-lhe o assessor.

   O olhar se manteve no assessor, misterioso, até que se fez interrogativo.

  - Diga-me, espelho meu: haverá algum limite para mim?

   - Sim, o céu - respondeu-lhe o assessor. - O céu da presidência da república.

                             

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