NEM UMA LÁGRIMA

                                                           NEM UMA LÁGRIMA

   Mariana era uma adolescente linda e pobre. Marcondes, que era um quarentão casado e rico, resolveu que Mariana seria sua. Insinuou-se na vida dela, simpático, amigo e presenteador. De repente, sonhos de Mariana se tornavam realidade. Passeios, viagens, hotéis paradisíacos dependiam dum eu quero dela. Deslumbrou-se. Viu-se poderosa, e muito alguém. Antes carecedora de tudo, agora tinha roupas de grife, joias, alimentação nos melhores restaurantes, e tantos passeios quantos quisesse.

   Era o escândalo da cidade. Foi expulsa do ginásio. Foi expulsa até da sua casa, pela mãe em prantos. Mas se tornou uma rainha nos melhores hotéis das mais belas praias do Brasil.

   O seu príncipe era um homem bonito, atração das mulheres. Ela se sentia a eleita, superior às que rodeavam o seu príncipe quarentão: mulheres sofisticadas, da alta sociedade.

   Engravidou-se, afinal, e o conto de fadas começou a se transformar numa história de horror. Acabou num hospital, para exames e cuidados necessários à gestação.

   Só ali é que soube que era para abortarA sua reação foi um raio:

   - Não! Nunca! Denuncio vocês todos à justiça!

   A tentativa, empreendida aos quatro meses da gestação, falhou. Aos seis ou sete meses, outra tentativa. Uma cesariana.

   Com pavor do parto normal, ela se submeteu, avaliando-se no sétimo mês de gestação. Mas quando viu o bebê congelou-se de horror, porque era um feto, sem forma e sexo definidos. Sete ou só seis meses de gestação? Errou no cálculo?

   O médico foi sutil como um robô:

   - Só tem duas horas de vida - informou-lhe.

   Mariana soube, então, que caíra na segunda tentativa de aborto.

   Uma garota normal se desesperaria, cairia em depressão e pensaria em suicidar, mas ela não era uma garota normal. Fervia nela a composição hormonal de uma guerreira. Com predomínio de uma rara carga de testosterona - apurou-se anos depois.

   Revoltou-se, não aceitou a morte do seu bebê. Chorava, o ódio crescia nela. Gemia e gritava quando se debruçava sobre a sua bonequinha de cera, e a olhava trêmula de pavor. Brigou com os médicos, ameaçou denunciá-los, e aos gritos impôs cuidados extraordinários do hospital.             Ficou todo o tempo em vigilância, ao lado do berço. Xingou, rezou e chorou por vinte e sete dias e vinte e sete noites, ao fim dos quais levou para casa o seu bebê, que saiu com as roupas do hospital, porque outras não tinha. A irmã de Mariana olhou longamente a bonequinha e concluiu, com lágrimas nos olhos: estava condenada à morte.

   O príncipe encantado pagou as despesas do hospital, onde tinha parentes e amigos, como se essa fosse a sua única obrigação. Virou sapo, um sapo asqueroso porque ausente, frio e desumano.

   A estufa do bebê era o peito, as mãos e os braços de Mariana. As roupas eram doações dos vizinhos. O leite materno, que ela não tinha, era coletado por mães compadecidas, e em potinhos chegava diariamente ao porão onde ela e o seu bebê moravam. Sem faltar um dia sequer. Assim foi que Mariana conheceu a solidariedade humana. A entrada das mulheres em seu porão era um alívio, o fim do choro do bebê. E era ela quem chorava ao agradecer-lhes o leite e lhes beijar as mãos, como se fossem fadas mágicas.

   O bebê se fez Ana Maria, que foi criada heroicamente pela mãe guerreira, com inacreditáveis sacrifícios. Dormiam juntas e muitas noites abraçadas, como irmãs siamesas. Maior do que o amor, sustentava Mariana na luta uma força admirável, que parecia vir-lhe dum comando de Deus.

   Ana Maria se tornou uma bela garota, como bela fora a mãe, mas ao contrário da mãe, que teve os seus estudos interrompidos pelo príncipe encantado, Ana Maria estudou, destacou-se nos estudos, e se transformou numa excelente médica. O impossível se realizou mais uma vez, porque Mariana pôs a sua forte personalidade, as suas incríveis energias e a sua obsessão inquebrantável a serviço da filha, trabalhando horas extras e noturnas como industriária, e aos domingos como vendedora de roupas femininas.

   O príncipe encantado morreu com um fulminante aneurisma cerebral, e no cemitério Mariana apareceu com a filha, então com dois anos de idade, isso a pedido da família de Marcondes. Postou-se ao lado do túmulo da família, próxima à viúva, e com medo duma reação passional daquela mulher tão ostensivamente traída e, assim, tão cruelmente humilhada.

   Nem uma lágrima se viu no rosto de Mariana, e o seu olhar em Marcondes eram uma inexorável condenação.

  A viúva revezava o olhar pétreo em Marcondes com um olhar em Mariana. Dos seus olhos, também nenhuma lágrima. Mariana tremia, sob a insuportável tensão emocional, e se preparava para tudo o que viesse. Mas o olhar da viúva traída, o seu olhar em Mariana era um abraço solidário, carregado de ternura e da compreensão de que ambas tinham sido vítimas de um canalha.

   Com um beijo na testa de Mariana, a viúva traída lhe acariciou o rosto, ajeitou-lhe os cabelos revoltos ao vento, e lhe murmurou ao ouvido:

- Meu amor, o inferno será pouco para o nosso carrasco.

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