O HOMEM QUE BEBIA RAIOS DO SOL

                                     O HOMEM QUE BEBIA RAIOS DO SOL

Estava nu diante do espelho, e triste. No rosto a exaustão: setenta e cinco anos de idade, cinquenta anos de advocacia. A cabeleira da adolescência ainda ali estava, mas prateada. Era um sobrevivente da advocacia que se aposentara, e via os dias passarem longe da arena forense, sem adversários a desafiá-lo e sem juízes e promotores para aplaudir ou xingar.

Quis comemorar os cinquenta anos de batalhas forenses, nas arenas civis, penais e trabalhistas.

Para comemorar foi conhecer Paris, mas foi sozinho e conheceu a solidão. Divorciado, sem filhos, sem netos, esse vácuo seria preenchido com mulheres e noites fantásticas.

A comemoração foi um mergulho do abismo da solidão para outro mais fundo, o da depressão. Inferno do qual quis emergir, comprando uma fazenda com quase quinhentos hectares, que o entusiasmou no início, recolocando-o de pé, para depois lançá-lo na vala do desespero em dois anos.

Pensou muito, na insônia de muitas noites.

Embora ateu, dizia que o agricultor estava na mão de Deus e do diabo. De Deus, que lhe mandava secas, geadas e chuvas de pedra. Do diabo, o Mercado, que lhe bebia o sangue através de mil e uma estratégias. Voltou-se para a pecuária leiteira, e descobriu que a merda das vacas valia mais que o leite, já que servia como adubo do cafezal.

Concluiu que os agropecuaristas dos sopés da Mantiqueira eram os escravos de uma nova escravidão. Os negros foram escravos de um só senhor. Os agropecuaristas da região eram escravos de três senhores: os bancos, as multinacionais da química agropecuária, e o governo - tributador voraz, vampiro insaciável.

Concluiu que ambos, negros pré-abolição e os agropecuaristas pós-Estatuto do Trabalhador Rural, masoquistas das cercanias da Mantiqueira, tinham um ponto em comum: trabalhavam de graça, e só ganhavam a comida porque não podiam morrer, já que tinham que produzir, produzir, para prestar a vassalagem aos três senhores. Parou. Sentiu que trabalhar sem esperança era uma tortura, como viajar sozinho para Paris, Roma e Madrid, sem uma só alma para compartilhar as emoções.

E quando a tortura afrouxava os seus tentáculos dava lugar a um tédio que o empurrava para a depressão, o sepulcro da vontade de viver. Via-se num vácuo que se deslocava, irrefreável, para relançá-lo no abismo.. Eram insuportáveis as vinte e quatro horas vazias, dia a dia, mês a mês. Preenchê-las-ia com amor, se pudesse. Mas divorciado, velho e feio, faltava-lhe a coragem para assediar alguém. Na verdade, faltava-lhe tudo, para resgatar as alegrias da vida.

Mas a mente trabalhava, febril. Na advocacia sempre achava os acórdãos e as fórmulas salvadoras da sua dignidade profissional.

Olhava amiúde as mãos, o pescoço. Neles, os sulcos do septuagenário.

Inexorável, o tempo.

Invencível?

Não! E repetia a cada dia: não!

Átila era ateu, mas um ateu de muitas crenças e ideologias. Acreditava que o comunismo seria a redenção da humanidade. Mas não sabia, em profundidade, o que era o comunismo, nem sabia o que era a humanidade. Só acreditava em Deus quando tinha que xingar alguém, nos momentos de ira. Xingava Deus, e se apaziguava. Sofreu a decepção dos revolucionários utópicos, mas era um homem de muitas crenças, e no paroxismo da sua tristeza acreditou que o tempo biológico era um adversário que poderia vencer. Ou pelo menos um adversário contra o qual seria apaixonante lutar.

O tédio era um adversário.

O tempo, o outro.

Inventou, então, um esporte e uma arte para combater os dois.

Chamou-os de A LUTA ANTICRONOS.

Gostou do desafio. Não acreditava que Deus criou o universo, mas sim que o universo estava criando Deus. A razão é ascensional até o infinito. A espiral dialética condena a razão a evoluir da imperfeição para a perfeição. Da bestialidade para a ciência, a beleza e o bem. Tudo é possível. Inclusive a vitória na luta anticronos. Que epopéia! Conseguiria travar o tempo? Rejuvenescer, talvez?

Sim, conseguiria. Nada é impossível.

Precisava de uma nova crença.

O sentido da vida? O sentido é ultrapassar. Viver é lutar? Sim, mas não para tão-somente sobreviver. Lutar para ultrapassar. Ultrapassar o quê? Tudo! Saúde, ciência, fortuna, sabedoria, tudo! Que belo sentido para a vida!

Era um pragmático cheio de sonhos. Que mal lhe faria mais um?

Poderia perder a luta soteriológica, mas certamente preencheria aquele tédio insuportável da vida sem objeto e sem objetivo.

Não poderia sacudir melhor os seus dias.

Leu dezenas de livros sobre viver mais e melhor.

Selecionou cento e sessenta chaves da saúde e da longevidade.

E a elas, por induções e deduções, acrescentou mais dez, um decálogo seu, exclusivamente seu. Tinha um código anti-envelhecimento em ebulição na cabeça, coroado pela alimentação antioxidante e por exercícios físicos ortodoxos e heterodoxos. Dentre eles elegeu como favorita a caminhada, mais compatível com os seus setenta anos. A caminhada entre os sons, as cores e os perfumes das montanhas. Mas a caminhada, achou-a uma atividade pobre. Como enriquecê-la?

E criou a caminhada anticronos: o caminhar fazendo respiração e meditação.

Empolgou-se com a meditação, mas a meditação, em si mesma, ele também a achou pobre, como achara a caminhada. Decidiu enriquecê-la. Ao invés de meditar com idéias, imagens ou o nada, faria exortações. Exortações a todas as forças do universo, na sua revolução anticronos. Das profundidades de si mesmo para a amplidão do universo cósmico. Dos seus átomos e neurônios ao sol e às galáxias, lançadas por forças transcendentais no espaço sem fim do universo. O sol é um canhão de elétrons, que bombardeia o homem - ponderou. E na imensidão do universo há trilhões de sóis, bombardeando-se uns aos outros, com seus raios cósmicos. Tudo isso à sua disposição.

E eu, o que sou? Uma bateria de hormônios e neurônios se carregando de energia solar. Trilhões de células, construídas por megalhões de átomos. Tudo é possível, com essa usina nuclear no meu corpo. Usina com potencial para acender todas as lâmpadas de Belo Horizonte, Rio e São Paulo.

Tudo é possível, dentro de mim - repetia.

E Átila animou a sua vida.

Caminhava todas as manhãs pelas estradas da sua fazenda, contra o sol nascente, e todas as tardes contra o sol poente.

Duas horas de concentração absoluta, sob os dois sóis. Uma de manhã, outra à tarde. Fazia exortações, que eram pensadas na cadência da respiração, repetindo-as durante todas as caminhadas. Quem o visse jamais perceberia que Átila estava ali fazendo fantásticas elucubrações com o micro e o macro universo.

- Glândulas, hormônios, neurônios, energizem-me!

- Sol, astros, galáxias, energizem-me!

- Átomos, células, moléculas, energizem-me!

Do alto da serra vizinha à fazenda de Átila, ao pé duma torre de telefonia com quarenta metros de altura, uma mulher observava um ponto negro, lá embaixo, na fazenda vizinha, que avançava contra o sol, naquelas manhãs de céu azul.

- Faz caminhada - gritou do alto da torre a sua filha adolescente, de binóculo à mão.

Átila se via delirando, nas suas exortações auto-hipnóticas. Mas se aquilo era um delírio, o sol, aquele canhão de elétrons, era uma realidade. Ele o bombardeava de elétrons, e os raios eram uma energia real, que ele poderia beber, como um elixir. A boca era a parte mais sensível à ação dos raios, e ele beberia os raios, sim, como bebia todas as manhãs a sua vitamina de frutas.

Passou a beber os raios do sol e a cumprir os demais cento e setenta mandamentos da epopéia anticronos.

Um dia se assustou, ao espelho. Tinham desaparecido cinco rugas do rosto, e três manchas senis das mãos.

A luta anticronos se tornou a obsessão de Átila.

- Canhões do universo, energizem-me!

- Células, moléculas, energizem-me!

- Astros, galáxias, energizem-me!

- Neurônios, hormônios, energizem-me!

Uma obsessão, uma paixão. Sentia-se cada vez mais saudável, dormia mais, tinha mais apetite, e cada vez mais a terra se transformava no paraíso. Incrível! Estava nele o poder de operar a mágica.

E cada vez mais o espelho o assustava.

Estava rejuvenescendo!

Seus braços recuperavam forças esquecidas. Suas articulações estavam salvas das gotas e das artrites. Não mais comprava analgésicos. Insônias e enxaquecas, seus tormentos da vida inteira, acabou por esquecê-las.

Seu rosto ganhava os rubores da juventude.

Seu corpo pedia mulheres.

Até onde eu posso ir, nesse vôo?

Mas aí lhe aconteceu Gertrudes, que gostava de ser chamada de Gegê. Aquela que lhe acompanhava a caminhada do alto da torre.

Gegê o via de perto, ao binóculo, pelas veredas dos pastos. Ficou curiosa e quis conhecê-lo. Ao se aproximar dele foi captada por uma estranha energia. Abduzida como uma mosca. Mas aconteceu que a mosca era venenosa. Átila lhe adorou as picadas, realmente embriagadoras. Cinquentona enxuta, por que não? Ele vencera o tédio, mas não a solidão. E muito menos as tentações do corpo. Depois de três idas ao motel, três beijos de boa noite e três madrugadas insones, carregadas de ânsias de adolescente, desencadeou-se a tragédia: apaixonou-se.

Gertrudes de Almeida Faria sepultara dois maridos e seguia viúva, pela vida, ordenhando vacas no seu sítio, absolutamente impermeável às abordagens dos fazendeiros dos arredores. Mas de Átila gostou. E aquela mulher era das que, gostando, cortejavam sem escrúpulos. Pouco tempo depois eram dois que subiam na torre, para admirar os cumes da Mantiqueira e para namorar, lá no alto, com beijos apaixonados, até quase perder o equilíbrio e cair lá de cima. Sustinhos, abraços de alívio, beijos de adolescentes.

Mas a realidade desabou sobre Átila.

Vencera o tédio, vencera as doenças e estava vencendo até o tempo, mas agora enfrentava o amor.

Gegê era um anjo quinze dias, e quinze dias o demônio. Era uma usina de encrencas. Tinha na cabeça um arsenal incrível de exigências e reclamações. Átila não tinha Deus, para socorrê-lo, e buscou um colega da cidade vizinha. Precisava dum ombro amigo, um confidente, um conselheiro. Escreveu uma carta para um colega, quarenta e oito anos de advocacia, outro sobrevivente da classe, adversário terrível mas amigo leal. A carta era um pedido de socorro. Átila se sentia refém de uma mulher que já começava a desprezá-lo. Não mais caminhava, a não ser atrás de Gegê; não mais meditava, a não ser em Gegê; não mais fazia respiração, porque o ódio-amor por Gegê lhe apertava o peito, deixando-o sem ar.

"Meu amigo , socorro!"

" Caí numa enrascada. Conheci uma mulher..."

" Eu mesmo me dei o conselho que você me dará. Disse a mim mesmo, centenas de vezes: liberte-se dela! Um sábio conselho, mas libertar-me dela está além e acima de mim. Essa Gegê não é uma mulher, é uma penitenciária. Quem cai nos seus braços cumpre pena de reclusão. Em dez meses acabei me introvertendo nela, e agora só vivo para administrar as encrencas de Gegê, as imposições de Gegê, as traições de Gegê. Sou o prisioneiro de Gegê. Já não consigo extroverter-me dela e viver no mundo exterior dos mortais livres."

"Gegê existe exorbitantemente em mim.

Estou escravo no chão, e amo Gegê-rainha com paixão.

E a cada afronta de Gegê o imã redobra o magnetismo e eu vôo e me colo nela ainda mais. Temo que isso acabe numa ânsia de entrar por ela e me aninhar para sempre no seu útero, cárcere perpétuo, já que esse retorno ao útero já me está parecendo o máximo desejo erótico do homem.

Por que não abandono Gegê, numa suprema explosão da vontade, e me salvo?

Já arrolei trinta razões para me libertar de Gegê, todas elas sábias e inquestionáveis. Em vão. Contra elas trinta uma só se alevanta, indestrutível: a paixão.

E quanto mais me prendo nela, mais ela quer me soltar. E acho que já me trai, porque me humilha e me destroça sem o menor constrangimento.

Sou um inocente e cumpro pena de reclusão; amo a liberdade e me quero galé; ela me empurra pela goela abaixo a carta de alforria e eu lhe suplico a escravidão.

Assim, para nunca mais, sou o prisioneiro de Gegê.

E pensar que quando me separei da esposa me embriaguei de liberdade até o paroxismo. Ah, o êxtase alucinógeno de ser 100% livre nesse mundão sem Deus e, diabo livre, armado de poder e dinheiro! No entanto - ó encontro fatal! - foi no uso dessa liberdade que me uni a Gegê e me tornei escravo, e conheci o inferno, e pedi para Deus existir.

Sou leal a ela, e ela me é letal.

Gegê não é uma mulher. É um mar encapelado. E eu sou um barquinho a vela, que lutou e lutou para não adernar, mas que ao fim, estropiado, vencido, mergulhou nesse mar infernal, náufrago total e para sempre.

Existe uma palavra sua, que me salve ou pelo menos me console?

Espero por ela.

Do colega e amigo..."

O colega lhe respondeu com a sua experiência de quase meio século de batalhas forenses:

" Átila, o seu drama é de fácil diagnóstico. O difícil é a solução, que é a fuga da penitenciária. Você vai ter que serrar as grades, ainda que seja com os dentes, e saltar fora do cárcere, qualquer que seja a altura do tombo. Você, meu amigo, está nas garras do pêndulo de Satanás. Existem mulheres estimulantes, neutras e neutralizantes. Gegê é emblemática, como neutralizante. E você é emblemático, como vítima em potencial da depressão. Entre dois tipos assim o amor só pode acabar em tragédia. Surge entre eles o pêndulo de Satanás, que descobri aos trinta anos de advocacia. É que a mulher tipo usina de encrencas deprime o homem, e o deprimido exagera todos os sentimentos, inclusive o do amor, que se transforma em paixão. Aí entra em cena o pêndulo de Satanás. A paixão aumenta a depressão, que aumenta a paixão, que aumenta a depressão,que aumenta a paixão, e a vítima do pêndulo de Satanás, acorrentada nesse vai-vem letal, começa a falar em morrer. Madame Deprê dum lado e a hiperpaixão do outro, cada vez mais carregados do apelo mortal. Não há escapatória fácil, meu amigo. Nem antidepressivos de alto poder, porque você se gruda na mulher, que é o veneno, cada vez mais. Gegê é um cárcere abissal. O cilício da paixão é aniquilador. Melhor serrar as grades de Gegê e pular fora, meu irmão, que dos males e malefícios de Gegê o tombo é o menor."

Num esforço sobre-humano, Átila quis pular fora de Gegê, mas não conseguiu. Gegê o levou de volta à estaca zero. Via-se velho, fraco e sem vontade de viver.

Eram dez horas, e ele estava deitado de bruços no pasto, entre vacas e bezerros, pensando em morrer.

Pôs-se em decúbito dorsal, chorando, e um grito desesperado lhe explodiu na garganta e ecoou pelas serras. Ergueu a cabeça, e o sol, insuportavelmente brilhante, o cegou.

O sol. Entregou-se a ele.

Abriu a boca e fechou os olhos, como se tentasse não só beber-lhe os ráios, mas engoli-lo inteiro. Inteiro, como uma hóstia.

Assim permaneceu, boca aberta, até o sol esconder-se atrás da nuvens.

Quando se ergueu, já tinha resgatada a vontade de viver.

E na manhã seguinte já sabia o que fazer.

A epopéia anticronos! As cento e sessenta chaves da longevidade. Sobretudo a caminhada anticronos!

E saiu pelas estradas da fazenda.

- Glândulas, hormônios, neurônios, energizem-me!

- Sol, astros, galáxias, canhões do universo, energizem-me!

- Eu quero, eu posso, eu vou conseguir!

Mas os dias passavam e os tentáculos da depressão não afrouxavam.

A garra, os pensamentos positivos, os hormônios, os neurônios, os astros e as galáxias não podiam mais que Gegê.

Gegê era mais forte que todas as forças do universo.

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